quarta-feira, 25 de março de 2015

se essa rua fosse nossa- Depoimento de uma vitíma de estrupo

A imagem ilustra um fundo na cor cinza escuro com ilustração de dois olhos fechados onde só vemos os cílios e do lado direito uma gota de lágrima na cor vermelha. 

Aconteceu com uma de nós. E dói em todas nós.

"Foi há uma semana mas ainda me desce seco pela garganta.

Era segunda-feira, meio-dia. Um dia depois do dia da mulher. Parecia mentira que um dia antes eu estava no mesmo lugar, conversando com minhas irmãs sobre respeito e liberdade, com alguma esperança preenchendo meu coração.

Voltando da aula, desci do ônibus na Av. João Pessoa, última parada, próxima a Rua da República. Meu trajeto seria o mesmo de sempre: atravessar a rua e caminhar pela Rua José Bonifácio até o Bom Fim. Esse trajeto era o melhor possível, por mais que atravessar o Parque da Redenção a pé fosse muito mais próximo. Já resignada com o fato de que minha rotina seja pautada pela insegurança, desci e fui.

Eu caminhava rapidamente - acompanhada pelo medo de tudo-de-ruim que poderia me acontecer. Acho que toda mulher sente isso ao passar por esse tipo de local. Mas nesse dia, meus medos não ficaram só na minha mente.

Pelas minhas costas, dois homens me agarraram e me arrastaram pra dentro do Parque da Redenção. Eles me taparam a boca e meus gritos eram abafados pelos dedos dos meus agressores e o tráfico de carros da rua. Não lembro muito bem como eles eram - sem camisa, calção preto amarrado por um cordão de tênis, um deles tinha cabelo raspado descolorido - mas lembro e muito de cada minuto da agressão que eles me causaram.

Um deles estava por trás de mim e outro pela frente. As mãos rápidas e vorazes passeavam por todo meu corpo. E pra quem ficou com dúvidas, todo mesmo: bunda, peitos, vagina. Há essa hora eu já gritava muito e meus gritos se ouviam de longe, porém todos que passavam, e também outros que estavam ali, pareciam ver uma cena cotidiana. Ninguém se solidarizou ou sequer parecia ver aquilo com espanto. E eles continuavam: sentia as quatro mãos como lâminas no meu corpo. Não sei ao certo se pelo medo de alguém ouvir meus gritos ensurdecedores ou pelo esgotamento de interesse em mim, em um certo ponto eles pararam. Reviraram minha bolsa e só pegaram meu celular. Atiraram minha bolsa em cima de mim e saíram correndo. Meu valor estava ali taxado: o preço de um smartphone popular.

Eu fiquei ali, violada, no chão junto com minhas coisas. Enquanto me levantava tremendo, um homem muito bem vestido com roupas de academia passou correndo por mim. Ele diminuiu a velocidade ao me ver no estado que estava. Por alguns instantes cheguei até pensar que ele falaria comigo, porém ele passou batido. Ao perceber que ali não encontraria ajuda, ou pior, poderia "acabar" de ser abusada, saí correndo até minha casa.

Não tenho palavras pra descrever a dor e o pânico que senti, ou que vi nos olhos dos meus. A ira e o ódio também eram sentimentos presentes, assim como o medo, a insegurança e a profunda descrença na existência do bem nesse mundo.

Como seria de se esperar, fui a polícia procurar ajuda e relatar o que me aconteceu. Por mais que sentisse extrema resistência, afinal tenho tanto medo da polícia como tenho dos meus agressores.

Chegando na Delegacia da Mulher (no Palácio da Polícia, perto da João Pessoa), imediatamente fui atendida por um policial homem (acho que não preciso explicar aqui os motivos do porquê isso me agride). Após relatar brevemente meu caso, fui orientada a preencher uma ficha de cadastro e aguardar o atendimento. Logo após, uma policial chamou-me ao balcão. Ali, na recepção da delegacia, na frente de todos, tive que relatar sem pudores o que me aconteceu e recebi uma resposta direta e objetiva: "Tu sabe que vai fazer a ocorrência porque tu quer, né? Não podemos fazer nada pra te ajudar". E me vi ali, tendo que convencê-la da importância do meu relato, nem que seja pra "virar estatística".

Fomos até o gabinete pra de fato fazer o B.O. De portas abertas para a recepção, assim como o gabinete ao lado, no qual outra mulher aos prantos relatava um caso pesado de violência doméstica. Contei minuciosamente cada detalhe do que aconteceu. Durante meu relato, várias vezes tive que escutar frases como "mas tu não foi de fato estuprada, não é?", "como assim tu não foi conversar com as testemunhas oculares que estavam no local?", "fica difícil te ajudar se tu não me disser mais detalhes sobre eles", "a polícia não tem culpa, o Estado cortou a hora extra e por isso não tem policiamento na rua". Ao fim da ocorrência, a policial me pergunta se pode me dar um conselho "fora do registro" e dispara: "Sinceramente, acho que vale mais a pena tu comprar um spray de pimenta e ir pra Zero Hora. Teu caso não vai dar em nada". Ou seja, de acordo com a Polícia Civil, eu mesma sou responsável pela minha própria segurança. Não posso contar com sua proteção.

Depois de tanto banho de água fria, de uma instituição que - em um mundo perfeito muito longe daqui - deveria me fazer sentir segura, o absurdo ainda não havia acabado. Feita a ocorrência, fui orientada a me dirigir ao Departamento Médico Legal para fazer o exame de corpo de delito. Dei a volta na quadra (o DML também fica no Palácio da Polícia) e entrei no prédio escuro e fétido. O homem na recepção, que me olhava dos pés a cabeça, mal perguntou meu nome e me disse pra subir as escadas e "não reparar porque o prédio estava sem luz".

No andar superior, pra minha surpresa, na mesma sala que eu estavam mais ou menos 15 presos, todos homens, algemados, com 5 oficiais do BOE armados com escopetas. Todos eles me olhavam fixamente e eu também olhava pra eles: incrédula. Qualquer um deles poderia ser um dos meus agressores. Notado o meu desconforto, um dos oficiais me informou da existência de uma sala de espera exclusiva para mulheres e lá aguardei o atendimento. Uma mulher veio falar comigo, perguntou o que aconteceu e eu relatei. Apesar do mesmo discurso ouvido na delegacia, com frases do tipo "mas se ele não teve relações sexuais contigo nem sei porque tu tá aqui", eu insisti fazer o exame. Mas desisti logo que fui informada que ele seria feito por um perito (que nem médico é) homem. Uma vítima de estupro - sim, por lei meu relato já se enquadra como estupro - tendo que ficar nua, num prédio sem luz, sem a acompanhamento de um familiar, com um homem.

Voltei pra casa desolada com tanto absurdo. Eu, uma menina branca, social e economicamente privilegiada, passei por esse atendimento terrível e opressor, exatamente do órgão que deveria me amparar numa situação como essa. Imagine mulheres em estado de vulnerabilidade social o que passam? Falta de tato, humanidade, respeito, cuidado. Em momento nenhum me foi oferecido sequer apoio psicológico, o que é evidente que eu precisaria numa situação dessas.

Esse relato foi a única forma que encontrei de gritar por ajuda. Não podemos contar com a boa fé das pessoas, não podemos contar com a polícia, não podemos contar com o estado. Estamos à mercê de uma sociedade violenta e escatológica. O medo faz parte de nossas rotinas e infelizmente ele é a única coisa que nos protege, quando ele ainda nos impede de circularmos livremente por nossa cidade e vivermos nossas vidas. A vida não tem valor. O corpo não tem valor. A liberdade não existe.

O que mais me choca é que, enquanto escrevo, muitas mulheres passam pelo mesmo. E muitas, mas muitas pessoas, nem sequer sabem da existência desse problema social. Espero que as palavras que escrevo com dor sirvam pra reflexão de tantos que menosprezam a importância da luta das mulheres por uma sociedade mais segura, justa e solidária."


Fonte: Página Facibook: se essa rua fosse nossa.