domingo, 4 de dezembro de 2016

A história de Carol (Reportagem do Sul21)

Como Carol foi de vítima de violência de gênero a ativista – em cadeira de rodas


Reportagem publicada no Sul21 em  3/dez/2016, 15h10min
Para acessar a reportagem original clique AQUI.

Fernanda Canofre




Legenda: Carol Santos abriu a porta de casa para receber o Sul21 e contar sua história. Foto: Maia Rubim/Sul21/ Descrição da foto #PraCegoVer Foto horizontal. Carol está sentada na entrada de sua casa, em frente à porta, que está aberta, deixando entrar uma luz vinda da rua. 


Carol chega em frente ao seu computador para começar a escrever o livro da sua história e nada. Na área de trabalho, uma pasta guarda ideias e anotações que ela reúne há anos para colocar dentro dele. Todos, passagens de capítulos mais a frente. O problema é o início.
“Não sei se começo abrindo os olhos, com o Marcelo me tocando, eu não consigo iniciar a minha história contada em um livro. Eu posso até começar, mas não consigo continuar”, diz ela, batom roxo nos lábios, olhos pintados, cabelo vermelho longo cuidadosamente jogado para o lado. A imagem de uma mulher independente e vaidosa, que convive com uma cadeira de rodas há 16 anos.

O bloqueio de Carol tem duas causas: a primeira é a dificuldade de enfrentar um momento da vida em que ela não conseguiu manter os olhos abertos; a segunda é a agenda lotada de ativista, mãe e dona de casa que consome todo o tempo em que passa acordada.

O currículo é longo. Carol ajudou a criar e é parte da coordenação do grupo Inclusivass – voltado a lutar por acessibilidade e direitos de mulheres com deficiência, parte do Coletivo Plural. Trabalha com um projeto que atende mulheres vítimas de violência e com deficiência física – o único entre 33 selecionados da América Latina a incluir mulheres deficientes – e integra o Comitê sobre Violência Obstétrica no Brasil. Ainda escreve em um blog, publica artigos, faz palestras, acaba de lançar um filme com sua história e cria sozinha o filho Robert, de 3 anos. “Mãe cadeirante”. “Deficiente/Eficiente”. “Carol Diversidade”, como ela mesma se define em suas páginas online.

Carol descobriu o ativismo feminista quando encontrou por acaso um flash mob para alertar sobre feminicídio e violência de gênero, organizado pelo Coletivo Plural, no centro de Porto Alegre, em 2012. “Estavam todos deitados [no chão] e eu deitada do meu jeito. Naquele dia, eu consegui perceber que toda essa história que carreguei comigo durante 12 anos, de sentir aquela culpa, eu consegui me redescobrir, saber que não era culpada, que eu era vítima”, conta ela hoje.

O dia que mudou tudo na vida de Carol Santos foi uma manhã de domingo, calma e quieta em boa parte de Porto Alegre. Era 23 de abril de 2000.

O outro começo

Carol conheceu “Fulano” – como ela chama o homem de quem se nega a pronunciar o nome – quando tinha 15 para 16 anos. Ele era colega de escola da irmã mais nova dela, tinha 14 para 15 anos e não demorou para começarem a namorar. “Foi tipo amor à primeira vista. Ele me mandava toda semana cartas pelo correio, mesmo morando no mesmo lugar”, lembra.

Os dois também viviam histórias parecidas então. Os pais de ambos se separaram. Carol foi viver com a mãe, sem ter com quem ficar, “o fulano” se mudou para a casa delas e os problemas começaram. Cedo o namorado começou a demonstrar ciúmes “excessivos”. “Ele controlava as roupas que eu vestia, quando saía comigo, grudava do lado para que os outros homens não me olhassem e foi mostrando isso. Ele tentava me dominar e eu sempre fui muito independente”, diz ela.

Quando Carol começou a trabalhar fora, com quase 18 anos, sentiu que a situação estava a sufocando. Assim que chegava do trabalho, ele estava na parada de ônibus a espera. Não havia mais nenhum momento sozinha, nem espaço, nem tempo para isso. Por mais que a incomodasse, parecia amor, cuidado, carinho. Ela ainda não conseguia entender como abuso, parecia normal. Assim como parecia normal ter que transar com o namorado, mesmo quando ela não queria. Casais faziam dessas coisas, ela pensava.

Foi nesse momento da vida que Carol conheceu e se apaixonou por Marcelo, um colega no emprego novo. Levou ainda 4 meses para ela decidir dar um basta no relacionamento abusivo em que estava e resolver ficar com ele. O namoro dos dois durou 4 dias.

Uma semana antes de Carol e Marcelo começarem a namorar, o ex, capinando a grama do pátio da casa de Dona Vera, mãe dela, já havia avisado: “o dia que a Carol me largar, eu vou matar ela”.

No primeiro e único domingo de manhã que Carol teve com Marcelo, ela viu uma sombra conhecida parada na porta de casa. Para evitar brigas entre o novo namorado e o ex, levou “o fulano” para o pátio da casa para conversar. O novo namorado de Carol pediu que o ex fosse embora e a deixasse em paz. Depois de uma discussão entre os dois, parecia que as coisas iriam enfim sossegar. Ainda assim, Carol teve uma sensação estranha, fechou todas as janelas e portas da casa, por precaução. Ela esqueceu só a janela do quarto da mãe aberta.

Foi por ali que poucos minutos depois, viu o ex voltar com arma em punho. Foi por ali que Carol ficou cara a cara com ele, arma encostada contra sua testa, tentando negociar, pedir que ele fosse embora, impedir que ele conseguisse entrar.

“Ele dizia: Carol, eu vou atirar, eu vou te matar. E eu corri. Quando eu corri, ele atirou. Eu já caí na hora. Já perdi na hora o movimento das pernas. Foi tudo muito rápido. Eu lembro que senti aquele estouro, aquele barulhão e aquela coisa me queimando e caí. Daí, eu lembro que – fiquei consciente o tempo todo – eu vi o Marcelo e ele disse pra mim: Carol, ele vai te matar. Ele nem pensou nele, pensou em mim. Eu fechei os olhos para não ver o Marcelo morrer. Depois que eu fechei os olhos, não escutei mais nada”, conta ela.

A vida depois

Depois de matar Marcelo com dois tiros, atirar contra Carol, o ex dela disparou contra a própria cabeça, em frente à casa. Demorou ainda dois dias para que ele morresse, no hospital. O tempo todo, as camas dele e de Carol ficaram no mesmo quarto, viradas uma para a outra. Nos jornais, o crime era tratado como “passional”. Crime motivado por “emoção ou paixão”, segundo o artigo 28 do Código Penal Brasileiro.

Carol ainda passaria meses entre cirurgias e cuidados. Quando recebeu alta, voltar para a casa era voltar para a memória daquela manhã de domingo. A mãe dela conseguiu então uma outra casa para viverem, enquanto a delas era reconstruída, para apagar as cenas da tragédia. A nova casa, porém, ficava no meio de uma ladeira, na Vila dos Sargentos. Com dificuldade para sair com a cadeira de rodas pesada, que ainda não aceitava, Carol passou a ir para a rua apenas a cada seis meses.

“Eu demorei pra aceitar, pra voltar a viver, foi tudo difícil. Porque naquela época, eu só fiquei sabendo que eu não ia andar e ‘vai pra casa’. Eu fiquei cheia de escara, porque usava fralda grande, eu não sabia que eu podia fazer xixi com sonda, eu não sabia que eu poderia fazer cocô com estímulo ou remédio ou auxílio, eu ficava, às vezes, 15 dias sem ir aos pés, ia para o hospital mal. Sempre com infecção urinária. Sem informação nenhuma”, relembra hoje.

De tanto ouvir que precisava sair de casa, Carol resolveu voltar a estudar e terminar o Ensino Médio. A realidade a encontrou. Quando começou a busca por escolas, viu que nenhuma era adaptada. Pior, nenhuma parecia disposta a receber uma aluna cadeirante que precisaria de suporte. Foi a fase da vida a qual ela mesma se refere como “a batalha do estudo”. Demorou quase um ano para que Carol encontrasse uma escola, seis anos depois de ter perdido o movimento das pernas.

Carol precisou conhecer um senhor cadeirante que a encorajava a sair de todo jeito, para que fosse para a rua. Precisou entender que tinha direito de brigar com as companhias quando o ônibus vinha com o elevador para deficientes físicos estragado. Precisou começar a escrever em um blog, para colocar para fora boa parte do que é viver sempre “braba” para ter direito de fazer coisas simples – como ir à casa da irmã ou ao médico – respeitado. Depois do tiro que acertou sua coluna, essa era sua nova vida.

Com três pontos de lotação e dois de ônibus perto da porta da casa onde vive com o filho no Belém Novo, hoje, depois de muita dificuldade, ela diz que “está bem servida”. O que ainda a incomoda é a maneira que os cobradores falam com cadeirantes. “Eles perguntam onde vou descer, explico que vou descer em tal parada: ‘ah, a cadeira vai descer!’ Podiam falar o cadeirante, podiam perguntar o meu nome. A terminologia que é usada pelos funcionários… é muito forte. Pô, a ‘cadeira’? Cadê a pessoa nessa cadeira?”, se indigna.

O capacitismo e a dor do parto

Carol aprendeu a ser independente, arrumou uma casa para morar sozinha, encontrou grupos de militância e ativismo que viraram seu lugar e decidiu ser mãe. Antes de ser uma mulher com deficiência, em uma cadeira de rodas, ela era uma mulher capaz de suas próprias decisões.

Mas não foi bem assim que o mundo a recebeu. Primeiro, escutou muito durante a gravidez, “como ela iria cuidar do filho? Ela devia estar louca”. Depois, encontrou aparelhos de exames ginecológicos que não eram adaptados para ela. Atendida em um hospital da rede pública, Carol também voltava a cada consulta para encontrar um médico novo na sala. Nenhum parecia saber do caso dela. Quando a infecção urinária de sempre piorou, os médicos a encheram de remédios. Nenhum citou que aquilo poderia colocar a vida do bebê em risco.

Que a própria gravidez seria de alto risco, Carol já sabia desde o início: “Principalmente pela condição física, é um corpo parado gerando uma criança. Poderia ter trombose, aumento da pressão e eu tive pré-eclâmpsia”.

Sem muitas informações dos médicos, Carol começou a procurar por conta própria grupos de gestantes no Facebook atrás de ajuda. Acabou encontrando Nani, uma doula, que se prontificou a ajudá-la. Juntas, as duas criaram um plano de parto. Quando a bolsa estourou – e ela estava sozinha em casa – já sabia o que fazer.

A hora do parto de Carol não foi menos difícil que sua vida. Depois de 12 horas em trabalho de parto – com as dores das contrações somadas às dores de sempre – tentaram barrar a entrada de sua doula na sala. Como o pai do filho de Carol é deficiente visual, os médicos acabaram aceitando a presença dela para narrar o que acontecia a ele.

Para os médicos, o parto natural de uma mulher com paraplegia, era no mínimo curioso. O hospital inteiro parecia pensar da mesma forma. “O meu parto não foi privado, só para mim, para os médicos, o pai e a doula. Ele foi assistido por muita gente. Uma coisa que eu não autorizei. Quando eu vi a sala estava cheia e todo mundo falando ‘chama o fulano, está quase na hora’. O hospital todo pode ter acesso ao meu parto, sem meu consentimento”, diz Carol.

Na sala de parto, Carol virou a estatística de uma em cada quatro mulheres a sofrer violência obstétrica, no Brasil. Com dificuldade, os médicos abriram uma incisão em sua vagina. Sem dar tempo suficiente para ver como o corpo de Carol responderia, uma médica subiu em sua barriga para empurrar a criança. Carol diz que ainda sente dor no local, do lado esquerdo do corpo.

Quando o filho nasceu, com a cor de quem havia ficado sem oxigenação, foi levado para longe dela para ser tratado. “Eles demoraram para vir me limpar, eu com as pernas arregaçadas, fiquei ali. O Robert demorou para vir, por causa do procedimento. Eu fiquei sozinha, sem o meu filho e ninguém me dizia o que estava acontecendo”, lembra.

Quando os dois foram para casa, passados alguns meses, funcionários do posto de saúde perto da casa de Carol, chamaram ela e o Conselho Tutelar para avaliar se ela tinha condições de cuidar do filho. “Eu chorei muito na reunião, era meu filho e estavam me julgando por eu não ter condições de cuidar do meu filho”, diz Carol.

Carol por todas

Apesar de todas dores que colecionou pela vida, Carol ainda acorda todos os dias cheia de disposição. Durante a entrevista, mesmo nas memórias difíceis, mantém-se firme e resoluta em contar sua história. O que a move é a vontade de mudar o cenário geral para outras mulheres como ela. “Vivemos rotuladas, vivemos invisibilizadas. Ainda existe esse rótulo quanto às mulheres com deficiência, principalmente ao ser mãe, ao querer sair de casa, ao querer trabalhar”, avalia.

O trabalho dentro do Inclusivass é um meio para tentar quebrar esses rótulos. Há alguns meses, as mulheres do grupo se reuniram para fazer uma inspeção surpresa na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, localizada no Palácio da Polícia, na Avenida Ipiranga. Chegando lá, perceberam que Carol e sua cadeira não teriam acesso ao local. Ela acabou sendo atendida na rua, porque não havia ninguém que ajudasse a levá-la quatro lances de escada acima. Depois da visita, elas abriram um inquérito civil no Ministério Público para denunciar a falta de acessibilidade.

Liza Cenci, colega de Carol no Inclusivass e presidente do Conselho Municipal para Pessoas com Deficiência, também cadeirante, diz que os problemas de acesso estão em todo lugar. E é muito pior para as mulheres. Aparelhos de mamografia não são adaptados a elas, postos de saúde também não possuem rampas ou aparelhos adaptados, as cadeiras ginecológicas muitas vezes não podem recebê-las.

“As empresas ainda têm medo de contratar mulheres com deficiência. A nossa mobilidade é dificultada, porque as calçadas estão em péssimas condições. A atitude das pessoas é de não te deixarem viver em sociedade. Pegar uma linha de ônibus, em Porto Alegre, logo no início o motorista dá a entender que não estava funcionando (o elevador) para não te carregar. Se tem algum compromisso, como médico, tu perde”, diz Liza, que vive no Centro da cidade e evita sair de casa por causa das dificuldades.

Nesta semana, as mulheres do Inclusivass se reuniram na Assembleia Legislativa para assistirem juntas – com legenda e audiodiscrição – ao filme “Carol”. O filme, que foi produzido com apoio da Casa, foi apresentado este ano no Festival de Cinema de Gramado, que ganhou adaptação de palco e acessos para recebê-la. Carol também se prepara para em breve estar em uma das campanhas da Avon, revendedora internacional de cosméticos.

“Às vezes eu digo, é muita coordenação para uma pessoa só. Ainda tenho tempo de ser mãe, ser dona-de-casa, apesar de eu não gostar dessa palavra, e de me cuidar”. Hoje, ela vive de olhos bem abertos.

Carol Santos. Foto: Maia Rubim/Sul21 / Descrição da foto #PraCegoVer  Foto horizontal, mostra Carol de perfil, olhando para a direita, com os cabelos longos e vermelhos colocados para o lado. Uma luz está sobre o lado esquerdo do rosto.