Carol Santos*
A história das pessoas com deficiência e, especialmente, das mulheres com deficiência é marcada por violência, exclusão e silêncio imposto. Por séculos, esses corpos foram tratados como propriedade de famílias, instituições ou do Estado. Foram tuteladas, infantilizadas, segregadas e privadas de autonomia. Suas experiências foram desconsideradas, e seus direitos, negados.
No caso das mulheres, tudo isso se amplia pela força do patriarcado. O machismo e o capacitismo se combinam para produzir um tipo específico de opressão, na qual o controle sobre o corpo, a sexualidade, a capacidade de decisão e a participação pública é intensificado. A misoginia o ódio às mulheres ganha uma camada adicional quando dirigida a mulheres com deficiência, frequentemente vistas como “menos mulheres”, “menos capazes”, “menos dignas”.
Essa combinação transforma muitas delas em alvos três vezes mais expostos à violência: física, psicológica, sexual, patrimonial, institucional e obstétrica. A dependência produzida pelas barreiras sociais e a falta de acessibilidade deixam muitas mulheres com deficiência vulneráveis dentro da própria casa, nas instituições de saúde, nos abrigos e até nos serviços que deveriam protegê-las.
O silêncio social e o descrédito fruto do capacitismo agravam ainda mais a situação: muitas denúncias não são levadas a sério, muitas vozes são ignoradas.
Ainda assim, mesmo atravessando essas múltiplas violências, mulheres com deficiência sempre resistiram. E é graças a essa resistência que hoje podemos falar de direitos.
Uma trajetória que deixou marcas profundas
A exclusão das pessoas com deficiência e especialmente das mulheres não foi um acidente histórico: foi um projeto sustentado pelo patriarcado, pelo machismo estrutural e pela crença capacitista de que corpos não normativos não pertencem à vida social.
As marcas dessa história ainda estão presentes: escolas inacessíveis, falta de oportunidades de trabalho, invisibilidade política, esterilizações forçadas, tutela compulsória e o questionamento constante da capacidade dessas mulheres de decidir sobre suas próprias vidas.
Da negação ao reconhecimento: uma linha histórica de luta
1960–1970 — nascimento do movimento moderno e do modelo social
Nesta época, pessoas com deficiência começam a se organizar internacionalmente, denunciando o isolamento imposto. É nesse ambiente que nasce o modelo social da deficiência, afirmando que os obstáculos não estão nos corpos, mas nas barreiras culturais e estruturais que a sociedade cria.
Mulheres com deficiência passam a denunciar que, além das barreiras físicas e sociais, enfrentam ser tratadas como incapazes, assexuadas ou, ao contrário, disponíveis para o abuso fruto direto da misoginia e do capacitismo.
2006 — Convenção Internacional da ONU
Aprovada após intensa mobilização global, a Convenção coloca a deficiência no campo dos direitos humanos, reconhecendo autonomia, participação, igualdade e acessibilidade como princípios fundamentais.
É uma resposta direta a séculos de violências sustentadas pelo machismo e pelo capacitismo.
2009 — O Brasil incorpora a Convenção com status constitucional
É um marco: o país se compromete a enfrentar todas as formas de opressão, incluindo as violências de gênero e de deficiência, que limitam profundamente a vida das mulheres.
2015 — Lei Brasileira de Inclusão
Após décadas de reivindicação, a LBI consolida direitos básicos e cria mecanismos de proteção e participação social.
Ainda que tardia, é uma lei que reconhece que pessoas com deficiência inclusive mulheres têm o direito de existir, amar, decidir e participar plenamente da sociedade.
Mas que direitos são esses que levaram tanto tempo para chegar?
São direitos que deveriam ser óbvios, mas foram negados por séculos:
viver sem violência em casa, na rua, nas instituições e no digital
ter autonomia sobre o próprio corpo, maternidade e sexualidade
exercer trabalho digno e remunerado
estudar em escolas inclusivas e acessíveis
circular pela cidade com segurança
participar da política e da vida pública
acessar saúde sem discriminação
amar, desejar, construir sua própria vida
existir sem tutela imposta
Esses direitos só se tornaram garantias formais por causa da luta coletiva e principalmente da luta das próprias mulheres com deficiência.
Mulheres com deficiência têm desafiado o patriarcado capacitista ao afirmar:
não somos frágeis demais para decidir,
nem fortes demais para sofrer caladas;
não somos objetos de cuidado;
somos sujeitos de direitos.
Elas reivindicam voz, representação, segurança, autonomia, acessibilidade e respeito. São cada vez mais protagonistas na denúncia das violências escondidas sob o nome de “proteção”, e na construção de políticas públicas que reconhecem suas vidas como dignas.
No Dia Internacional dos Direitos Humanos, é preciso reafirmar:
direitos humanos só existem quando todas as pessoas conseguem exercê-los sem machismo, sem violência, sem misoginia e sem capacitismo.
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