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Imagem de um par de sapatinho com uma peça de roupa de cada lado. |
Nasceu. É menina! Depois do enxoval cor-de-rosa vêm as bonecas, bercinhos, mamadeirinhas, forninhos… Tem que se acostumar, desde cedo, à vida doméstica. É menina, vai ser delicada, carinhosa, vai aprender e gostar, desde cedo, de cuidar. Virou mocinha, começou a namorar.“Não vai ter filho agora, hein?”. Namorou, noivou, casou. “Quando é que vêm os filhos?”. Um ano, dois, cinco, dez anos. Nada de filhos. Tá passando da idade, vai ficar pra titia. “O que, mas não vai ter filho?”.
Não, sem filhos. Por não ver a necessidade de passar adiante seu material genético, por achar que o mundo não precisa de mais uma criança, por não ter condições ou, simplesmente, por não estarem dispostas; seja pelo motivo que for, cada vez mais mulheres têm negado seus famigerados relógios biológicos e optado por uma vida livre da maternidade.
Segundo levantamento feito pela Síntese de Indicadores Sociais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2013, 38,4% das mulheres entre 15 e 49 anos não tinham filho. Entre as mulheres de 25 a 29 anos, 40,4% não tinham filho, uma queda em relação às mulheres da mesma faixa etária em 2004, quando esse índice era de 32,5%.
Para a psicanalista Corinne Maier, a redução na taxa de fecundidade brasileira é fato mais do que coerente. Mãe de dois adolescentes, Maier é autora do livro Sem filhos: 40 razões para você não ter, no qual descreve, detalhadamente, uma série de “bons motivos para não sucumbir à tentação de enfrentar as consequências e os sacrifícios que a escolha pelos bebês pode representar.”
De acordo com a escritora, quanto mais cresce a fertilidade, menos as pessoas se declaram felizes. O livro, lançado no Brasil pela editora Intrínseca, aborda as dificuldades de relacionamento entre pais e filhos e aponta os sentimentos ambíguos que essa relação envolve, além de denunciar a banalidade e as limitações da vida doméstica e os malefícios da educação moderna.
Sem cair no radicalismo de dizer que filhos “afundam a existência das pessoas” como Maier, é possível, de fato, nomear grande número de “bons” motivos para a queda nos índices de natalidade. Mas seria mesmo necessário? Por que nos parece tão natural aceitar o desejo da maternidade, enquanto a falta dele é tão absurda que carece de infindáveis explicações?
“Eu realmente não me vejo com filhos, não está nem entre as minhas 20 prioridades na vida”, diz a estudante Ana Carolina Leonardi. Apesar de reconhecer que essa opinião pode mudar e que ainda é nova – como todos insistem em ressaltar -, questiona a assimetria desse conselho: “Se eu digo ‘minha opinião pode mudar, mas não me vejo tenho filhos’, todo mundo me lembra o quanto eu sou nova, que essa não é uma escolha pra se fazer tão cedo e que meu relógio biológico um dia vai apitar. Mas, quando minhas amigas dizem que querem ter filhos, às vezes vários filhos, todo mundo sorri e diz ‘que demais!’. Peraí, se eu preciso ter mais maturidade pra saber se não quero mesmo ter filhos, a pessoa não precisa ter maturidade pra saber se dá conta de ter cinco filhos? Se a regra é que sou muito nova pra ter certeza desse assunto, por que isso não vale para todas?”.
Para ela, a resposta é clara: porque continuam considerando que a principal e natural função da mulher é ser, em suas palavras, uma “parideira abençoada”.
Querer não é poder
Renata Fonseca tem 45 anos e carregou no peito, durante toda a vida, o desejo de ser mãe. Fez tudo como manda o figurino: namorou, casou, e, quando chegou a hora, engravidou. Mas o conto de fadas não teve a sequência esperada. Aos 28 anos, com cerca de quatro meses de gestação, descobriu uma má formação no feto, o que teria de levar à interrupção da gravidez ou ao nascimento de uma criança com problemas sérios de saúde. “Foi muito doloroso para mim. Senti muita culpa durante muito tempo. E o pior: me sentia sozinha, pois parecia que ninguém estava sentindo o mesmo que eu. E não estava mesmo, né? Só eu sabia o que era estar com um bebê na barriga sem saber até quando”.
Passado o primeiro trauma, Renata engravidou novamente e sofreu um aborto espontâneo aos dois meses de gestação. A odisseia estava apenas começando: depois de alguns anos, por conta de uma doença, Renata teve que remover o ovário direito. Na cirurgia, pegou uma infecção que reduziu drasticamente suas esperanças de maternidade. “O próprio médico disse que isso seria muito, muito difícil… Isso porque nem ele, nem ninguém, contava com as forças do universo. Nem três meses depois da cirurgia e da infecção, com 39 anos e um ovário a menos, eu estava grávida”.
Renata optou por perseguir o sonho de ter filhos, mas esse nem sempre é o caso.
Aos 20 anos, Fernanda Guillen ainda é jovem, mas, portadora de uma condição genética, já sabe que a ideia da maternidade é dela distante. Sua doença, um tipo de displasia ectodérmica, é recessiva e ligada ao cromossomo X; ou seja, mesmo portadora, os sintomas que Fernanda apresenta – não ter dentes permanentes e produzir muito pouco suor – são poucos e leves, devido ao fato de ser mulher.
“Desde pequena eu sabia que tinha isso, porque os dentes dos meus amiguinhos caíam e os meus não. Quando meus pais descobriram, fizeram testes genéticos comigo e com a minha irmã. Os dois têm esse gene recessivo, mas não têm a doença.” Quando pequena, os pais já comentavam o risco que ela e a irmã correriam se engravidassem. Se tivessem meninos, a chance de transmitirem a doença seria muito alta, e a condição seria severa.
“Não sei se eu nunca tive vontade de ser mãe por saber dessa doença, então meio que reprimi isso. Não sei se, se eu não soubesse, seria diferente. Mas a verdade é que eu não tenho a menor vontade, nem de adotar. Sei que posso adotar, mas acho que sempre estive acostumada à ideia de não ser mãe, então nem disso eu tenho vontade”.
Para ela, o maior desafio não está em contemplar uma vida sem filhos, mas em falar sobre isso com outras pessoas. “Quando eu falo que não quero ter filhos, elas me olham com uma cara de ‘você é muito imatura e não sabe o que está falando, uma hora muda de ideia.’ E se eu falo que talvez não possa mesmo ter filhos, me olham com uma cara de ‘nossa, sua vida acabou’, como se tivesse que ser algo fundamental na minha vida. E isso não é só por parte de pessoas mais velhas. Eu entendo ficarem com dó, que é triste, mas não é o fim do mundo. É só uma característica minha, como ter 6 graus de miopia – o que, particularmente, me prejudica muito mais.” Fernanda concorda com Ana Carolina: “ainda tá muito enraizado no imaginário que mulher precisa ser mãe, e precisa ter o filho no próprio ventre.”
Mãe sim, mas do meu jeito
Júlia Rocha sempre quis ser mãe, mas foi pega de surpresa pela forma com que isso aconteceu. Mal passara pelo ano de caloura no curso de Letras da FFLCH-USP, descobriu que engravidara, acidentalmente, antes dos 19 anos. Hoje com 22, Júlia e a filha, Luísa, vivem bem adaptadas à vida enquanto mãe jovem e universitária, mas a coisa não veio tão naturalmente.
Mesmo desejando a maternidade desde que se entende por gente, Júlia admite o desespero que acompanhou sua gravidez e os primeiros meses da vida da filha. “Eu chorava todos os dias porque não queria ter engravidado. Não é que eu não queria aquele bebê, eu não queria ter engravidado. E isso me desesperava de um jeito que eu pensava ‘eu não quero que ela se sinta renegada, eu não quero que ela sinta que eu quero tirar ela do meu corpo, eu não quero’. Mas eu não queria ter engravidado, não queria, e até hoje eu penso que não queria.”
Após passar por uma gestação difícil, enfrentando excessivo estresse emocional e uma série de problemas de saúde (incluindo o deslocamento de duas costelas e uma experiência de quase morte por infecção generalizada), ela aprendeu que o famoso amor incondicional da relação mãe-filha não é imediato. “Eu acabei descobrindo, nesses dois anos e meio, que a maternidade não é uma coisa que vem, baixa um santo e pronto, você é mãe. Uma hora você é uma grávida, e de repente você é mãe, não tem preparação pra isso. Mas ela vai vindo. Só eu sei que, quando ela tem que trocar a fralda, ela chora de um jeito. Quando ela tem fome, ela chora de outro jeito, e quando quer dormir, de outro. Ela foi me mostrando do que ela gosta, e eu fui me adaptando a ela”.
Ser mãe é um desafio e demanda sacrifícios. A carreira de professora, antes um sonho, hoje já não é mais um opção palpável, e o desejo de fazer intercâmbio vai ter que ficar para depois. Por saber tudo que a maternidade exige, Júlia entende e defende os argumentos de quem opta por viver uma vida sem ela, apesar de não ser a mesma escolha que a sua.
“A maternidade é uma coisa muito solitária. Ninguém te entende, e ninguém pode fazer por você. Por mais que você peça ajuda, se desespere, você vai fazer do seu jeito, e você vai saber fazer. Independente do que aconteça, você vai você vai aprender. Eu tinha pavor de panela de pressão, imagina. Aí tinha dia que eu não tinha tempo de ficar esperando uma hora até a mandioquinha cozinhar pra eu poder amassar e dar pra Luli comer. O que eu ia fazer? Panela de pressão. Como eu vou fazer isso? Não sei. Mas eu aprendi. E aprendi que também faz parte de ser mãe, mexer numa panela de pressão.”
Ser mulher: uma panela de pressão
A panela de pressão está no fogo todos os dias, e ser mulher, numa sociedade machista, é lidar constantemente com a relação “dois pesos, duas medidas” que atormenta Ana Carolina. Como todas as outras cobranças, a expectativa em relação a filhos não vem da mesma forma para homens e mulheres. “Tá difícil para as mulheres ainda, não temos as garantias por completo. Acho que, por essa razão, nós sofremos, nos sentimos culpadas e, por fim, acabamos aceitando as diferenças de direitos com os homens e as cobranças da sociedade. A mãe ainda é sempre a culpada, pode reparar. Se a criança é gorda, culpa da mãe. Se é magra, culpa da mãe. Se o filho é mal criado, ‘cadê a mãe desse moleque?’ E por aí vai”, diz Renata.
Júlia corrobora essa ideia ao discorrer sobre a maternidade compulsória: “Se o meu namorado quiser ser pai, por exemplo, ele vai ser pai de qualquer jeito, porque os homens têm tudo que eles querem. Então se eu não quiser ser a mãe dos filhos dele, ele vai me largar pra outra pessoa pra ser. Ou pior: vai ter outra família e me manter do lado. Então não, eu vou ser mãe. Mas que tipo de mãe eu vou ser, assim?”.
Fato é que a pressão não vem com a maternidade – pelo contrário, independe dela, acompanhando a mulher desde o momento em que ela nasce. Júlia resume: “Se você é mãe, você tem que ser a mãe perfeita. Seus filhos têm que achar que você é a mãe perfeita, seus pais têm que achar que você é a mãe perfeita, o pai do seu filho tem que achar que você é a mãe perfeita. Se você não quer ser mãe, você também tem que ser perfeita. Você tem que ser a profissional perfeita, a mulher perfeita, a esposa perfeita, você tem que ser livre perfeitamente”.
Militante ativa pela causa feminista, ela conta que sua luta ficou muito mais forte depois que se tornou mãe: “Eu sei que tá muito longe de eu conseguir melhorias com a minha luta, mas, além de eu querer um mundo melhor pra mim, eu espero que para ela esteja melhor.”
E o que faz um mundo melhor? “A gente precisa, obviamente, de uma sociedade que pressione menos. Mas a gente só consegue essa sociedade fazendo com que a pressão não valha”, afirma Júlia, que venceu a intrusão de amigos e parentes ao deixar claro que a educação de sua filha diz respeito somente a ela. “Eu acho que a Luli não deve ser pressionada nunca, não pressiono nem para ela comer. Eu só fiz isso uma vez, muito recentemente, ela disse que não queria comer e eu insisti. Ela vomitou. Eu acho isso uma metáfora muito simples do que a pressão faz: ela vai te fazer mal, e você vai ter que por aquilo pra fora de algum jeito. Então só não deixa entrar.”
Fonte:http://www.lado-m.com/