segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Mulheres com deficiência falam de desafios que enfrentam no mercado de trabalho.








As inclusivass Vitória Bernardes e Liza Cenci participaram do Colóquia da Inclusão onde puderam discutir temas voltados ao mercado de trabalho, preconceito, inclusão e violência
    Débora Fogliatto
Vitória Bernardes é psicóloga, Lizete Ceni é advogada. As duas são mães e profissionais com formação superior, mas diariamente enfrentam barreiras de locomoção, além de constrangimento e preconceito, por serem pessoas com deficiência. Lizi é amputada nas pernas e na segunda falange dos dedos, enquanto Vitória é paraplégica e não tem mobilidade dos dedos. Na última terça-feira (4), as duas participaram do Colóquio de Inclusão da 60ª Feira do Livro que abordou o tema das mulheres com deficiência no mercado de trabalho. O evento contou com tradução simultânea para Libras.

Além de debater as questões específicas ligadas ao trabalho, elas também abordaram as discriminações sofridas em geral, a violência contra mulheres com deficiência e a questão financeira para pessoas que precisam de tecnologia assistiva. “A nossa cultura é muito baseada na meritocracia. Ou seja, tu personifica as conquistas, por isso é tão importante não glamurizar, porque acaba personificando. Até porque qualquer coisa que facilite a vida da pessoa com deficiência, como rampa, programa de voz, cadeira motorizada, custa caro”, apontou Vitória.

Ela é cadeirante desde os 16 anos, quando uma bala perdida se alojou em sua cervical, fazendo-a perder o movimento das pernas e das mãos. A partir daí, conta que sentiu que sua identidade como adolescente e como mulher havia sido perdida. “A minha maior preocupação era me recuperar a tempo de ir ao Planeta Atlântida, e as pessoas diziam que eu não podia estar preocupada com isso. A mensagem que eu recebia era de que eu não podia ser adolescente, não podia ser mulher”, relatou. Foi com a faculdade, cerca de dois anos depois, que Vitória conseguiu voltar a “se identificar e se inserir”.

A psicóloga ponderou que, embora as mulheres sofram dupla opressão ao serem cadeirantes, a deficiência também afeta muito os homens, devido à cultura da virilidade. Nesse sentido, uma das pessoas que participou da conversa foi André Martins Campelo, que é cego desde os 17 anos. “Eu já trabalhava numa empresa, tinha uma responsabilidade de estar noivo e sustentar minha noiva. Quando a visão se foi, isso tudo escorreu pelas mãos. E eu vi muito isso se remontar dentro do mercado de trabalho, comecei a ser produtivamente ativo com a música”, contou, criticando as histórias de “exemplos de superação” por criarem “expectativa de super-homem ou super-mulher”.

André (E) falou do ponto de vista de um homem cego | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Mercado de trabalho

Lizi relatou, porém, que o mercado de trabalho pode ser um espaço muito hostil para as pessoas com deficiência, narrando duas situações pessoais em que isso aconteceu. Quando era estudante de Direito, ela estagiou no Tribunal de Justiça, e conta que sua coordenadora não a passava o mesmo número de processos quanto para os outros estagiários. “Sou amputada, mas trabalho tanto quanto pessoas que não tenham deficiência. Vejo a falta de reconhecimento que o empregador tem com a com deficiência, pra mim isso é um assédio, eu não vou aceitar isso”, afirmou.

Em outro caso, a advogada foi a uma entrevista de emprego, há cerca de cinco anos, e foi surpreendida pelas perguntas da psicóloga que a avaliou para o cargo administrativo em um hospital. “Ela me entrevistou e queria saber tudo da minha vida, não das minhas habilidades. Ela me perguntou como eu tive meu filho, como criei ele, e não como eu queria trabalhar”, relatou.

Os desafios começaram logo que ela saiu da faculdade e procurou um local para trabalhar que fosse acessível para ela, em cadeira de rodas. Lizi deparou-se, no entanto, com a grande maioria de escritórios com escadas, sem banheiros com portas largas o suficiente e barras de apoio para cadeirantes.

É por isso que elas consideram que as vagas reservadas para pessoas com deficiência são necessárias na nossa sociedade atual. “Se a gente analisar toda nossa história e movimentos de minorias, dos negros, mulheres, das pessoas com deficiência, comunidade LGBT, sempre vai precisar de políticas públicas específicas. Imagina alguma de vocês disputar uma vaga em que os empregadores querem que seja magra, loira, alta e de olho azul. Não é muita discriminação querer alguém dentro desse perfil?”, questionou, colocando que a mesma lógica se aplica a empregadores que discriminam pessoas com deficiência.
Na foto Lizete Ceni esta de costas mostrando na imagem um degrau e a dificuldade de acessibilidade na feira.














Mesmo na Feira do Livro, nem todos os espaços são acessíveis, com rampas para cadeirantes | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A reserva de vagas, também chamada de cotas, determina que empresas com cem ou mais funcionários está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com pessoas com deficiência. Apesar de entenderem a importância da lei, as mulheres ponderaram a respeito da forma como as empresas a aplicam. “Hoje a gente percebe que (os empregadores) buscam a ‘menor deficiência’, e não determinada habilidade. Percebemos até salário diferenciado, com uma vaga específica para pessoas com deficiência ou que essas pessoas teoricamente não possam exercer”, criticou Márcia Cristina Figueiras Gonçalves, gestora de projetos sociais da ONG Desenvolver.

Vitória apontou que as conquistas de todas as minorias só foram possíveis porque em outros tempos, alguém batalhou para conseguir direitos. André concordou que a obrigação é importante nesses casos. “Essa reserva de vagas é a correção de uma distorção. Por causa dessa obrigação, estamos aqui falando sobre isso. Alguém algum dia falou ‘nós temos que contratar essa gente aí’”, observou.

Violência contra a mulher

As mulheres com deficiência são as vítimas mais frágeis da violência que atinge milhares de mulheres no país. Márcia observou que a existência de um ponto específico para esse assunto na Convenção de Direitos Humanos da ONU é um passo importante, mas que os casos de abuso continuam existindo. “Em cidades pequenas, principalmente, as mulheres surdas, mudas ou com deficiência intelectual são violadas na base do ‘ninguém vai saber, elas não vão falar’”, colocou.

Um grupo de mulheres com deficiência está começando a debater suas pautas específicas junto ao Coletivo Feminino Plural, conforme contou Lizi, onde elas vêem “índices de violência enorme”. Ela lembrou de Maria da Penha, que após sofrer tentativas de assassinato por parte de seu marido, ficou paraplégica e, mesmo após isso, continuou sofrendo abusos por parte dele.

Diálogo para compreender as diferenças

Vitória destacou a importância de se dialogar para compreender a situação das outras pessoas. “Eu não acho que todo mundo tem que ser militante, mas as pessoas que se disponibilizam para isso precisam tentar aproximar. Esse diálogo é importantíssimo, porque muitas vezes não é preconceito ou maldade. Tem gente que fica muito ansiosa pois tem medo de usar algum termo errado”, apontou, lembrando do caso da novela Amor à Vida, em que a atriz Alinne Moraes interpretou uma personagem cadeirante.
Na foto vemos os participantes do encontro.



Colóquios da inclusão acontecem todos os dias da Feira | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para ela, o caso foi emblemático por trazer à tona a questão das pessoas com deficiência física e por se tratar de uma atriz conhecida e encarada como “musa” nacional. “Foi um impacto positivo,porque teve gente que enxergava uma mulher mesmo, não via a deficiência em primeiro lugar. Ela usava adaptações, aquilo se tornou acessível mesmo que não tão financeiramente, pessoas souberam que aquilo existia”, observou.

Ela também considera que é a empatia e compreensão pela situação do outro que faz toda a diferença, contando que seus amigos passaram a prestar atenção na falta de acessibilidade e rampas após ela virar cadeirante. “Qualquer transformação não podemos depender só das pessoas que sofrem discriminação por causa daquilo, é um processo que envolve toda a sociedade”, apontou.

Ao mesmo tempo, a própria pessoa que é vítima dessa discriminação pode ser sujeita de seus avanços, conforme pensa Lizi. “Nós temos que nos unir e fazer a nossa parte, ir lá militar e cobrar, eu faço o tempo todo isso. Explico para proprietários que não posso entrar nos locais porque não tem acessibilidade e que isso é segregar”, relatou.

Colóquios

Os Colóquios da Inclusão acontecem todos os dias da Feira, na Estação da Acessibilidade, entre o Margs e o Banrisul, com entrada gratuita para o público em geral. Nesta quarta-feira (5), às 14h, o tema será audiodescrição como ferramenta de acessibilidade cultural e pedagógica.
Fonte:http://www.sul21.com.br